Tabacaria
Madalena é uma jovem muito sorridente. Caseira, se contenta perfeitamente com a vida em família, afinal, seu sonho é ter uma como a sua: cheia, amorosa, companheira. Seus pais são nobres, com sua contínua linhagem de cavaleiros espadachins servindo ao Senhor.
Cresceu admirando sua irmã mais velha, Célia, e cuidando, com ela, dos irmãos mais novos: Saulo, Antônio, Gabriel e Joaquim. Havia uma piada recorrente entre a família e amigos que a família demorou a ser abençoada com um menino para que as mais velhas tivessem o melhor treinamento de esposas de todos. Uma vez ela sonhou que todos os seus irmãos não existiam e que ela estava muito feliz por não ter de cuidar de ninguém. Quando acordou, pagou penitências por sua mente pecadora e jurou a si mesma controlá-la.
Adorava brincar de espadas com seus irmãos na infância, até ser proibida de continuar por estar se tornando uma mocinha, e limitou-se apenas a assistir os treinamentos deles (todos destinados a serem grandes cavaleiros, como o pai). Ela sentia falta de poder brincar livremente pelos campos, brandindo espadas de madeira contra monstros imaginários, mas, ao confessar isso ao Padre na sua primeira comunhão, se sentiu culpada por cobiçar algo que era dever para os seus irmãos.
Seu passatempo favorito se tornou ler, ler muito. Ela adorava histórias de princesas sendo salvas por homens valentes com belas palavras e armaduras.
Ela e sua irmã passavam horas conversando, planejando seus futuros casamentos. Madalena não tinha encontrado ainda seu Amor Verdadeiro, mas sonhava todos os dias com o momento. Ela não era tão sortuda quanto a irmã, que se apaixonara pelo melhor amigo de infância. Durante a adolescência, acompanhava a irmã nos cortejos e via o quanto os olhos dos dois brilhavam quando se viam. Ela sonhava com o dia que sentisse a mesma coisa por alguém.
No aniversário de 21 anos de Célia estava planejado o jantar em que receberia o pedido oficial de casamento de seu pretendente. Era o dia mais sonhado de sua irmã, o dia para o qual ela se preparou a vida toda. Para o choque das duas, o dote de Célia fora dado a um outro homem, de outra família nobre, que ela não conhecia, mas que, de acordo com o Senhor, era o marido certo para ela. O coração de Madalena despencou, mas sua irmã continuou sorrindo. Madalena queria gritar, mas sua irmã continuava plena. Ela só a viu despencar tarde da noite, quando imaginou que todos estivessem dormindo. Madalena estava acordada, e sentiu que precisava abraçar e consolar a irmã.
Mas por que ela precisava consolar a irmã, se ela estava seguindo os caminhos do Senhor? Ela tinha recebido uma excelente notícia, por que não conseguia ficar feliz por Célia? Seu coração se tornava pesado dentro do peito.
Desde então, ela não viu mais a irmã chorar, por mais nada. Célia sorria e agradecia toda a ajuda dos familiares nos preparativos para a celebração que viria no ano seguinte.
Com toda a correria para o casamento, as duas mal tiveram tempo de conversar sozinhas. Agora sua irmã era noiva, e em breve seria a vez de Madalena. Seu coração pesava, e ela se perguntava o que havia de errado com ela. Por que tantas dúvidas? Seria ela uma grande pecadora escondida?
Um dia, decidiu perguntar para a irmã como ela estava, quando conseguiram ficar a sós. Célia olhou para ela por um bom tempo, antes de sorrir, pegar a sua mão e garantir para a irmã que estava feliz, que confiava nos desígnios do Senhor. Talvez ela tivesse se preocupado à toa. Talvez ela tenha percebido que isso era, de fato, o amor certo, que o anterior era falso. O peito de Madalena cada dia parecia menor.
No dia do casamento, sua irmã sorriu muito, mas Madalena não a viu rir nenhuma vez. Dormir foi pesado naquela noite.
Após a mudança de Célia para a casa do marido, distante das terras da família, vê-la se tornou mais escasso, apenas nos aniversários e festas. Madalena esperava ansiosamente pelas cartas que sua mãe recebia e lia para todos os irmãos, em volta da lareira. Ela ficava aliviada de ouvir que sua irmã estava alegre e contemplando as alegrias da vida de casada, mas a preocupação era teimosa e permanecia ali, no fundinho da sua cabeça. Na primeira vez que receberam uma, Madalena perguntou para a mãe se a irmã tinha enviado outra só para ela também, já que sempre foram tão próximas. Sua resposta foi uma repreenda pelo seu desejo egoísta. Todos os irmãos mereciam cartas igualmente, por isso Célia mandava apenas uma para todos partilharem, assim como o Senhor partilhou o pão para os seus discípulos. Madalena se culpou pelos seus pecados. Se ao menos pudesse ver a letra da irmã nas cartas, talvez seu coração se acalmasse, mas mamãe as lia e depois papai as guardava na gaveta trancada do escritório.
Nas duas vezes que viu Célia no ano seguinte, ela sorria largamente, mas seus olhos pareciam perdidos. Todos perguntavam quando viria o primeiro bebê. Madalena não conseguiu conversar a sós com a irmã pois tudo era muito corrido, mas, às vezes, quando seus olhares se cruzavam, o olhar de Célia se tornava penetrante, como quem quisesse dizer alguma coisa. Talvez Madalena estivesse vendo coisas, projeções da sua mente pecaminosa.
Um dia, Madalena acordou e os pais não estavam em casa. Normalmente, eles a avisavam quando teriam de sair cedo para que ela preparasse os cuidados dos irmãos para o dia. Quando checou as camas, seus irmãos também não estavam. Ela levou a mão à testa. Como podia ter se esquecido? Seus irmãos estavam na casa de Titia, passariam o verão lá.
Ela estava em casa. Solitária. Ela não se lembrava de ter vivido a solidão antes. Sua mente passou a percorrer todas as possibilidades do que poderia fazer com seu tempo, mas paralisou com a mesma intensidade. Ela faria algo proibido só porque ninguém estava olhando? Era por isso que ela precisava controlar seus pensamentos pecaminosos, porque eles sempre a traíam, sempre a levavam a ver algo que não existia.
E, então, sua mente parou, finalmente, no último olhar que trocou com Célia.
Ela precisava olhar as cartas de sua irmã.
Madalena correu para onde ficava o esconderijo das chaves reservas de seu pai. Ela prestava atenção demais nos detalhes, ouvia conversas demais, entendia demais. Era culpa dela por ser tão curiosa, tão enxerida, mas dessa vez ela ignoraria esses pensamentos. Ela queria matar a saudade de sua irmã, mesmo que fosse apenas dos corações que ela colocava nos pingos dos is.
Ela abriu a gaveta sem pensar, para não correr o risco de hesitar.
Ela encontrou o dobro de cartas que esperava encontrar.
Sua irmã escreveu cartas apenas para ela todas as vezes. Todas estavam abertas, lidas, mas não por ela. Talvez mamãe tivesse juntado as cartas, recitado para todo mundo, para que nenhum irmão se sentisse excluído?
Madalena abriu as suas cartas. Era estranho se referir a algo como seu que não fosse dever, missão, fé, ou culpa.
Ela nunca vira aquelas palavras antes. Quanto mais lia, mais o ar faltava no peito. As cartas, em ordem de chegada, iam revelando a ela uma Célia cada vez mais… perdida. Cheia de… dúvidas? Tristezas? Dor? Parecia uma outra Célia aquela que se apresentava no papel.
O motivo para que seus pais tenham guardado essas cartas ao invés de queimá-las era desconhecido para Madalena. O que eles fariam a respeito? Por que eles não contaram a ela? Por que nada foi dito sobre o assunto?
Madalena percebeu que havia mais uma carta, recebida no dia anterior. Apenas uma, só para ela, que ela nem saberia que existia se não tivesse se rendido aos seus pecados.
Era um poema. Enorme, que ela nunca vira antes. Tabacaria, de Fernando Pessoa.
Madalena sentia seu rosto queimar, uma bola quente se formando na boca do estômago. Quando os pais chegassem em casa, ela faria alguma coisa. Ela não sabia o quê, mas precisava fazer qualquer coisa. Gritar, perguntar, chorar. Qualquer coisa era melhor do que não fazer nada.
Quando escutou o barulho dos pais chegando, ela correu para recebê-los. Quando sua mãe a viu, um sorriso tentou se formar no rosto dela que, naquele dia, parecia mais velho e mais cansado do que o normal, mas ele desabou em um choro desesperado, e o barulho de seu corpo caindo no chão, uma cena que Madalena jamais imaginara que presenciaria, sua mãe, caída, em prantos.
Madalena jamais imaginara também que receberia a notícia que recebeu naquela noite, e jamais imaginara que faria o que fez naquela madrugada.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Sua querida irmã, Célia, estava morta.
Naquela madrugada, Madalena recolheu o que não tinha e fugiu.
Madalena Ribadouro é uma personagem de uma mesa de Thirsty Sword Lesbians. Quem a vê não enxerga que, por trás da sua fronte conservadora está uma mulher que teve a coragem de fugir sozinha de um lugar que é feito para que ela não tivesse nenhuma força. Quem a vê sorrir e não olha mais de perto, não percebe a profunda tristeza que carrega dentro do peito.
Talvez a coragem necessária para fugir de tudo o que conhecia não seja suficiente para viver num mundo que não se encaixa nas suas Tradições.
Que o Senhor a perdoe.