Autobiografia de uma recém-rpgista
Antes de começar, gostaria de dizer que eu sou uma neném que acabou de despertar no mundo do rpg, portanto, esse texto não tem a menor pretensão de teorizar sobre suas questões, apenas relacionar o meu conhecimento com as minhas experiências e dividí-las com quem tiver disposto a ler.
Na minha área profissional, tudo gira em torno do texto. Como uma pessoa apaixonada por narrativas desde criança, eu tive a ilusão de achar que escolher trabalhar com o que amo tornaria trabalhar mais leve. Ledo engano. Apesar de amar o que faço, não foi fácil seguir um percurso que colocava em xeque a relação prazerosa que eu construí com a leitura ao longo da vida e passar a analisar criticamente todos os livros que tocava. Em pouco tempo, essa substituição me quebrou, e a cicatrização é um processo demorado que me acompanha até hoje, quando as feridas começam, finalmente, a descascar e coçar.
Nessa busca por recuperar o que havia perdido, me deparei com um texto sobre Autobiografia de Leitor de uma estudiosa francesa chamada Annie Rouxel. Nele, Rouxel convida escritores, professores e críticos literários a escrever sobre a própria (auto) história de vida (biografia) a partir de suas leituras (leitor). Para ela, esse gênero textual é importante porque “permite observar o lugar que ocupa o processo de identificação na recepção de textos e a que fenômenos de desdobramento identitário são convidados os sujeitos leitores durante o ato de leitura”. Quando há o encontro entre o leitor e a narrativa, esse leitor tem a oportunidade de descobrir mais sobre si mesmo, sobre sua própria identidade.
Eternamente inspirada pela busca identitária, a autobiografia veio, mais uma vez, em minha mente enquanto pensava sobre a minha (ainda) curta jornada com o rpg e o quanto ele tem influenciado os meus desdobramentos identitários. Ufa. Finalmente chegamos à parte mais agradável e menos teórica do texto.
Há quase três anos eu me relaciono com uma pessoa que respira rpg. Como um ser naturalmente apaixonado, me fascina ver outros expressando suas paixões, e o olho dela brilhava ao falar desse hobby que parecia ser mais do que um simples hobby. Havia dor ali também, claro, afinal, a origem grega da palavra paixão está aí para nos lembrar que a tristeza é uma das suas principais representações. Por mais que amasse falar de rpg, era incômodo para ela, na época, falar e não ter mesa para jogar. E, com isso, começaram os convites para participar de uma mesa com ela, convites esses constantemente empurrados com a barriga pela minha parte.
Não me entenda mal, caro leitor, nada contra o rpg, mas eu tinha medo. Conhecendo o meu investimento em narrativas, era assustador o pensamento de me permitir vivê-las com outras pessoas, expor partes de mim por meio de personagens, dividir inseguranças num meio nunca antes explorado. Por mais que ouvisse de quem me conhecia que eu adoraria, não deixava de ser intimidante.
Minha longa lista de recusas acabou por volta do final de 2019 e início de 2020. Tentamos montar uma mesa presencial que não deu muito certo. O sistema era simples o bastante para não me apavorar, mas parecia faltar química entre os jogadores. Ainda é uma sensação difícil de explicar, mas os interesses pareciam desalinhados. Eu achei que minha história terminaria ali. Ledo engano.
Junto com 2020 chegou o COVID. Junto do COVID chegou a quarentena, repleta de momentos de sanidade por um fio e mais tempo livre do que sou capaz de suportar. Já disse que tenho um alguém viciadinho que não desistia nunca, né? Pois é, ele continuou. E, enfim, chegamos ao momento em que finalmente vingou: uma mesa de medieval. Eu, Flávia. Jogando num cenário medieval. Não importa quantas vezes eu repita essa informação, ainda vai soar esquisito, dragões nunca foram a minha praia. Ao mesmo tempo, posso dizer com certeza absoluta que essa mesa mudou a minha vida. Independente do cenário ou da aventura, o meu maior medo se tornou o meu maior prazer: viver a narrativa com outras pessoas. Ter um grupo no qual você se sente seguro, confiante, ter um mestre que torce pelos seus jogadores e todos estão ali, juntos, em busca de uma experiência divertida. Agora eu finalmente entendia a preocupação dos pais nos anos 90. Rpg é droga pesada.
Passei a buscar mais mesas. Para jogar, assistir, acompanhar. Passei a ler feito louca sobre, tentando aprender sempre um pouquinho mais. Passei a seguir e conhecer pessoas incríveis, que me inspiram cada dia mais. Passei, inclusive, a pesquisar histórias ruins de rpg, porque tudo o que eu encontrava era maravilhoso. Eu tenho plena noção de que a minha experiência é um ponto fora da curva. Fui guiada, desde os primeiros passos, por uma pessoa experiente no meio que me poupou da parte tóxica da comunidade. Sou muito grata por isso, por ter alguém que já tenha trilhado esses passos antes, e por encontrar pessoas dispostas a fazer com que as experiências dos novatos sejam melhores do que as próprias foram ao começarem nesse mundo. Que loucura o conceito de criar um lugar melhor para as gerações futuras, não é mesmo?
Atualmente estou jogando em três mesas e assistindo a uma. São experiências completamente diferentes, mas há um elemento em comum que me guia por todas elas: os grupos. Não há nada mais lindo do que ver os jogadores torcendo uns pelos outros, se ajudando, rindo juntos. Na época atual que vivemos no nosso país, onde o individualismo tem falado cada vez mais alto e viver em sociedade tem sido cada vez mais um desafio, experenciar a coletividade nesses pequenos espaços é um respiro mais do que necessário. Além disso, como Rouxel disse antes, ele me revela. Cada vez mais tenho a certeza de que sou uma pessoa que quer crescer com as outras, e não à custa de. Não há alegria maior do que descobrir que não se está sozinho.
Não há, também, nenhum desfecho filosófico para este texto, apenas um convite. Refletir sobre as próprias leituras e as próprias experiências é uma oportunidade de redescobrimento como nenhuma outra, então tente também, um dia. Talvez, se tentássemos olhar um pouquinho mais para dentro, ficaria mais fácil olhar para fora e ver o outro. Talvez facilite a construção da empatia, tão necessária para o convívio com o diferente. Talvez.
Talvez eu seja apenas uma eterna sonhadora mesmo.