Antes do Fim
Moíra volta para sua cabana depois de conversar com Antônio Conselheiro. Apesar de fazer isso há 25 anos, uma parte sua esquece o quão cansativo é, todas as vezes, argumentar com ele. Talvez não seja culpa dele, talvez seja algo dos humanos e suas teimosias sem fundamento. Talvez essa teimosia seja uma característica especial dele. Talvez ela mesma seja teimosa. O que quer que seja, ela está cansada, mas infelizmente dormir não é o seu forte.
As névoas que cobrem o chão de sua cabana deixam o calor da caatinga um pouco menos insuportável. Depois de breves minutos, no entanto, ela já sente falta dele. Há um calor muito próprio do elemento humano que falta naquele lugar. Parece que quanto mais tempo ela passa ali dentro, mais distante fica da realidade. É como se ali fosse um espaço entre mundos. O material é imaterial e o imaterial se faz sólido. Talvez essa cabana seja um pouco como ela, presa na realidade apenas pelas estruturas fincadas no solo. Talvez ela se torne cada vez mais fria e etéria.
Moíra ri. Em breve esses questionamentos deixarão de fazer sentido por um bom tempo. Por um bom tempo ela não terá mais que pensar em missão, preservação, revolução, destino. Por um tempo ela vai descansar no nada, sem se preocupar com o futuro que está por vir e sem dar conta de um passado que não a abandona.
Ela chega na sala e desenha um círculo no chão com sua bengala. A bengala corta a névoa e manifesta formas paradoxalmente estáticas, como se o tempo pausasse onde quer que seu pé pisasse. O bom de mexer com o tempo é que não há dúvidas sobre suas visões serem apenas sonhos ou manifestações do real, elas simplesmente são. No entanto, há muito tempo ela não tinha uma que viesse do futuro. Seu corpo atual não se lembra da sensação, mas tem uma parte de si que sente como se tivesse um déjà vu. Não é como se ela existisse apenas nesta dimensão. Não é como se ela já não tivesse visto cenários parecidos no passado. Só é estranho tê-la como futuro.
As formas de névoa tocadas pelo tempo se iluminam e uma imagem surge em sua mente. Éris. Sempre em eterna mudança, sempre caótica. Ela traz uma mudança destruidora, mas qual não é? Talvez um dia ela precise ser tão caótica quanto para derrotá-la, mas o seu corpo atual não tem tempo para isso. Não tem vontade para tanto. O que ela pode fazer é garantir que o dano seja o menor possível, porque ele vai chegar. Ah, ele vai. E tudo será destruído. Ao menos ela precisa garantir que exista algo ou alguém capaz de reconstruir.
E surge, em sua mente, enquanto o círculo no chão passa a brilhar ainda mais, a figura daquele soldado. Por quê? Como? Algo dentro de si sabe que ele é a chave disso tudo, mas por qual motivo? O não saber bate em seu corpo como uma brisa de ar fresco, como um brilho no olhar que ele não está mais acostumado a sentir. Moíra se sente jovem de novo, com um futuro pela frente, sem amarras do passado fincando-a no chão.
Pera. Sem o passado? Ela sempre teve o passado atormentando-a constantemente. Pera? Desde quando ela fala isso?
Moíra olha pra baixo e procura por algo que não consegue enxergar. Dependendo de como a luz da lua que entra pelos vãos do telhado bate nas brumas aos seus pés, ela enxerga um frágil fio vermelho amarrado em sua cintura, e quase enxerga esse fio se conectando à figura do soldado na outra ponta. É ilusão, porém. O fio a une a alguém por trás dele. Não literalmente atrás, só… alguém que não está ali, mas está.
E a outra ponta do fio não se conecta a ela. Ela sabe que não tem ninguém ali além dela. Mas, de repente, tem. De repente, enquanto respira, uma outra respiração se segue, no mesmo ritmo, com a mesma força. Por mais que Éris esteja colada em sua nuca a todo tempo por toda a eternidade, dessa vez parece diferente. Parece Moíra, mas não é. Parece um reflexo de espelho que ela só enxerga se não olhar para ele. Parece uma luz que ela só vê ao fechar os olhos.
Moíra sorri, entendendo, enfim. Ela não está sozinha, nem nessa realidade nem em outras que estão por vir. Alguém a observa e age com(o) ela. Ela sabe que dessa vez terá que se esforçar dobrado, mas parece que uma força feérica dará a ela o dobro de força para isso.
Moíra olha para trás, como quem tenta ver o que já vira. Em vez disso, ela se depara com você e diz, com um sorriso no canto da boca, olhando nos seus olhos:
— Algo me diz que o futuro será bem, bem interessante.
Moíra é uma personagem de um jogo de RPG de City of Mist que representa uma vida passada de Rato, minha outra (outra mesmo?) personagem de Changeling. As duas estão conectadas por um fio do Destino. O seu já está no fim, mas o quanto ainda dá para fazer enquanto ainda está aqui?
E ela está nessa sozinha?